Corte constitucional americana restringe busca de dados de localização junto a companhias telefônicas
Quem é a pessoa que melhor conhece a sua rotina? Quem seria capaz de detalhar todos os seus passos, seus movimentos pela cidade e, em suma, apresentar dados de localização que poderiam subsidiar um relatório preciso sobre suas atividades habituais, incluindo reuniões de trabalho, almoços familiares e encontros sexuais? Essa pessoa não é o seu cônjuge ou seu mais confidente amigo. Ela nem sequer tem nome e sobrenome. Na verdade, nem mesmo é uma pessoa física, mas, sim, uma pessoa jurídica: quem melhor sabe sobre o que você anda aprontando por aí é a sua operadora de celular.
Timothy Ivory Carpenter, morador de Detroit, Michigan, descobriu isso da pior forma possível. O Senhor Carpenter, segundo o FBI, decidiu direcionar sua carreira empresarial ao arriscado negócio de roubos de lojas de … telefone celular. Como tantos outros empresários folgazãos, ele não queria “meter a mão na massa”. Seu papel era essencialmente intelectual. Ele concebeu e desenvolveu uma “startup” do crime. Carpenter escolhia os alvos, treinava e instruía os seus comparsas, planejava a ação e fornecia os insumos (armas de fogo de grosso calibre). Apenas para certificar-se de que seus colaboradores estavam seguindo corretamente o seu modelo de negócios, o “empresário” de Detroit supervisionava algumas das suas ações à curta distância do teatro de operações, observando tudo de perto, a partir de um carro roubado. E foi aí que ele se deu mal.
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Baseado em depoimentos testemunhais de alguns “ex-sócios”, o FBI “grampeou” Timothy I. Carpenter. Mas este foi um grampo diferente. Como a maioria dos jovens de hoje, Timothy não falava muito ao telefone, nem usava SMS, preferindo aplicativos que não deixam registros sobre o conteúdo das mensagens. Os promotores que atuavam no caso solicitaram, então, uma autorização judicial para que a companhia telefônica contratada por Carpenter lhes repassasse os seus dados de “CSLI”, ou “cell-site location information”. Em nossa língua, “informação de localização geográfica do celular”. Como se sabe, as comunicações com uso de aparelhos celulares só são possíveis graças a uma ampla rede de antenas que registram quando cada usuário está no raio de sua frequência. Estas informações ficam consignadas e armazenadas, de modo que as companhias de telefonia “sabem” quando qualquer um de seus clientes entrou na área de cada uma de suas milhares de antenas.
Como hoje em dia andamos com o celular grudados ao nosso corpo e o levamos para cima e para baixo, evidentemente fica muito fácil para a operadora “tracejar” nosso caminho pelo mundo. E, é claro, a companhia telefônica que prestava serviços ao Sr. Timothy I. Carpenter sabia por onde ele andava em suas suspeitas deambulações por Detroit – coincidentemente, ele estava sempre a cinquenta metros dos locais onde ocorriam os assaltos. Como o leitor pode imaginar, o governo americano estava ávido por estas informações, que seriam muito úteis em seu compreensível propósito de metê-lo atrás das grades por um longuíssimo período de tempo. E, de fato, com base nelas, a promotoria federal conseguiu condenar Carpenter a 116 anos de prisão.
Ocorre que os promotores federais que estavam à caça de Timothy solicitaram em juízo autorização para acessar seus dados de CSLI com base na Stored Communications Act, lei revista pela última vez em 1994, que permite a autoridades judiciais determinar, sem maiores formalidades, a colaboração de companhias de telecomunicações em investigações criminais, mediante o fornecimento de dados da linha telefônica de seus usuários. Processualmente, esse pedido dispensa os rígidos requisitos para a concessão de um “mandado de busca e apreensão” (search and seizure warrant), estabelecidos pela norma 41 das “Federal Rules of Criminal Procedure” e exigidos para a quebra do princípio da inviolabilidade de domicílio, protegido pela Quarta Emenda à Constituição da Filadélfia, situação em que a polícia ou o Ministério Público precisa comprovar concretamente que há um nexo de causalidade (probable cause) para o pedido.
Essa menor rigidez para a requisição de dados dos clientes de operadoras de telefonia ocorria porque, tradicionalmente, a jurisprudência da Suprema Corte entendia que documentos cedidos a um terceiro (como uma companhia telefônica ou um banco) não estavam protegidos pela cláusula de inviolabilidade de domicílio, já que o seu titular, ao compartilhá-los espontaneamente com uma empresa, não tinha “legítima expectativa de privacidade” sobre eles. Este entendimento havia sido fixado no precedente Smith v. Maryland, de 1979, em um caso no qual a Suprema Corte entendera que a autoridade policial poderia requerer diretamente a uma companhia telefônica os números discados pelo suspeito de estar cometendo um crime continuado, sem necessidade de um mandado judicial (Smith v. Maryland, 442 U.S. 735 (1979)). O mesmo raciocínio se aplicava a documentos bancários desde o precedente United States v. Miller 425 U.S. 435 (1976), no qual a corte constitucional entendeu que o governo federal poderia requerer registros bancários de um suspeito de sonegação fiscal, sendo igualmente dispensável a autorização judicial. Neste caso, inclusive, a Suprema Corte estabelecera que o titular da conta bancária não tinha expectativa de privacidade “mesmo se os dados foram compartilhados na pressuposição de que eles seriam utilizados apenas para um propósito limitado.”
O caso Carpenter ofereceu uma oportunidade para a Suprema Corte revisitar a conveniência de manter em pé a teoria da inexistência de expectativa de privacidade sobre documentos entregues a terceiros, especificamente quando está envolvida uma companhia telefônica. De 1979 para cá, as telecomunicações passaram por uma revolução sem precedentes. Será que o tipo de informação que as companhias telefônicas detinham sobre seus usuários há quarenta anos pode ser comparado àquele que elas detêm hoje? Será que não houve mudança nas expectativas de privacidade dos usuários das empresas de telecomunicações? Era essa, essencialmente, a questão que a Suprema Corte precisava responder neste processo e que, em última análise, representaria o abandono de uma jurisprudência da corte que se sustenta há quatro décadas. E estas mudanças radicais de orientação jurisprudencial não costumam ocorrer com muita frequência na Common Law, quase sempre representando um momento de tensão no sistema constitucional americano.
Em julgamento ocorrido há três semanas (Carpenter v. United States 585 U.S. (2018)), a corte reapreciou a questão e ficou extremamente dividida quanto ao mérito da causa. Como era de se esperar, os quatro juízes “liberais” (Breyer, Ginsburg, Kagan e Sotomayor) defenderam a posição que no Brasil chamamos de “garantista” e que tradicionalmente privilegia os direitos dos acusados em processos criminais, especialmente quando estão em causa potenciais abusos das autoridades policiais, votando, assim, em favor do overruling do precedente Smith. Quatro dos cinco juízes conservadores (Kennedy, Thomas, Alito e Gorsuch), em geral mais favoráveis em resguardar os poderes investigatórios do governo, votaram por manter o precedente Smith. O fiel da balança acabou sendo o Presidente da Corte, o conservador John Roberts, que se alinhou com os liberais, entendendo que o fornecimento de dados de “CSLI” representa tamanha intrusão na privacidade do indivíduo que não há mais como sustentar, neste particular, a teoria da “inexistência de expectativa de privacidade” por dados cedidos ou compartilhados com uma terceira parte, quando esta é uma operadora de telefonia celular.
Roberts foi o responsável por redigir a opinião da maioria (na Suprema Corte não existe a figura do relator; é o presidente da casa quem escolhe, dentre os integrantes da maioria, o responsável por redigir a decisão – no caso, Roberts escolheu a si próprio). Em sua fundamentação, o Chief Justice apresentou o problema: “a questão com a qual nos deparamos hoje é como aplicar a Quarta Emenda a um novo fenômeno: a capacidade de historiar os movimentos passados de uma pessoa através de seus sinais de telefone. Esse tipo de rastreamento tem muito em comum com o monitoramento por GPS, que já apreciamos no caso Jones. Da mesma forma que ocorre com um veículo rastreado, a informação de localização geográfica de celular é detalhada, enciclopédica e compilada sem maior esforço”. Ele se referia ao caso United States v. Jones 565 U.S. 400 (2012), no qual a Suprema Corte considerou inconstitucional, por violação à privacidade, a instalação sub-reptícia, pela autoridade policial, de GPS em veículo de suspeito, que passou a ter os seus passos seguidos.
Roberts lembrou que, a despeito do precedente Smith, há outros julgados que vinculam a ideia de privacidade à pessoa e não apenas ao seu espaço íntimo. Oportunamente trouxe à lembrança o caso Katz v. United States 389 U.S. 447 (1967). Neste processo, agentes federais “grampearam” um telefone público usado habitualmente por Katz, através do qual ele repassava apostas em um esquema ilegal de jogo. A Suprema Corte entendeu aqui que este grampo sem autorização judicial, mesmo feito em um telefone público, era ilegal, porque “a Quarta Emenda protege as pessoas, não os lugares”. Também recorreu ao importante caso Riley, mais recente, no qual a corte considerou que o acesso a dados armazenados em um telefone celular de um suspeito só pode ser feito através de mandado judicial de busca e apreensão (Riley v. California 573 U. S. (2014)).
O Juiz Roberts afirmou que a interpretação da Constituição deve levar em conta as enormes transformações tecnológicas, uma vez que as informações digitais podem facilitar um monitoramento abrangente, intrusivo e detalhado da vida privada, coisa que seria inimaginável há não muito tempo. “Quando o caso Smith foi decidido em 1979, poucos poderiam ter imaginado uma sociedade na qual o telefone acompanha o seu dono onde quer que ele vá, e em que se entrega às companhias telefônicas não apenas os números chamados, mas um registro detalhado e abrangente dos movimentos do titular da linha”. Ele destacou ainda que os dados de CSLI se aproximam cada vez mais da precisão de um GPS: “À medida que proliferam as antenas de celular, as áreas cobertas por cada uma delas encolhem, particularmente em espaços urbanos. Além disto, como a nova tecnologia pode mensurar o tempo e o ângulo dos sinais emitidos pelos aparelhos celulares, as operadoras já têm a capacidade de indicar a sua localização com precisão de 50 metros”. E concluiu: “Quando o governo monitora a localização de um celular, ele obtém um controle quase perfeito, como se tivesse encilhado uma tornozeleira eletrônica no seu usuário”.
No caso específico de Carpenter, ele foi monitorado durante 127 dias, ao longo dos quais foram indicados 12.898 locais em que ele esteve, tudo com base nas informações de torres de celular. As informações eram tão detalhadas que permitiram à polícia descobrir quando ele estava dormindo em casa ou frequentando sua igreja aos domingos. O Chief Justice concluiu que monitoramento além de sete dias já é suficiente para caracterizar violação à privacidade.
Em seus votos vencidos, os juízes que divergiram sustentaram que o critério adotado pela maioria é aleatório, alegando também, entre outros argumentos, que a decisão condiciona a atuação das autoridades policiais a uma litigância processual excessiva para a obtenção de provas contra criminosos perigosos. A decisão da maioria, todavia, excepcionou situações extremas, como sequestro de crianças, ameaças de bomba e riscos para a segurança nacional.
Atuaram como amici curiae no processo gigantes de tecnologia como Apple, Google e Facebook, argumentando que o caso lhes dizia respeito também, em razão de seu alegado interesse em proteger os dados pessoais de seus clientes.
Quanto ao Sr. Carpenter, ele está agora livre, já que a pena nada branda de 116 anos foi anulada. Ironicamente, o progresso da tecnologia de celular salvou o ladrão de celular. Mas isso pode durar pouco, pois ele será submetido a novo processo, no qual a promotoria terá que se valer de outras provas para obter sua condenação.
CÁSSIO CASAGRANDE – Doutor em Ciência Política, Professor de Direito Constitucional da graduação e mestrado (PPGDC) da Universidade Federal Fluminense – UFF. Procurador do Ministério Público do Trabalho no Rio de Janeiro.